um instante mínimo

(texto cumulativo)
sigo comendo de três em três horas e me perguntando o que devo fazer entre cada vez que como. agora, tem algo aqui que tende de forma coercitiva ao desespero, uma sensação parecida com demorar muito pra soltar o ar inspirado, sabe? sei que tenho controle mas me é estranho. entre essas três horas me lembro que não sei o que fazer com as mãos e continuo olhando fixamente pro ponto entre duas janelas. talvez seja aqui que eu more, não no que faço durante determinado tempo mas nesse intervalo.

tenho olhado pra trás enquanto espero o ônibus, a sensação de que talvez ele tenha passado sem eu perceber e que, de alguma forma, dê tempo de correr pra alcança-lo, dar três tapas na lateral e embarcar.
não sou de gritar, tento usar a boca com moderação.

olho o dente porque gargalha, é uma forma de machucar. vejo que é afiado apesar de quase redondo, parece um dente de mentira. tento pensar em alguma imagem que se assemelhe mas só chego num círculo desenhado com a mão esquerda. ainda assim, é bem delimitado. me queima a retina de forma a vê-lo mesmo que coberto ou distante.

quando o olho fixa por muito tempo em um ponto, se acostumando com o que vê, sente uma agonia. é uma aposta grande. como se a vista achasse perigoso ignorar o resto e precisasse se alongar procurando sentidos. as vezes, é um exercício estranho manter o olho aberto. aqui, observar com atenção é não procurar forma alguma que se pareça com o já avistado.

quando percebo o repouso, me apresso a agir de novo. tipo um carioca tentando ser gentil. é possível se perder nesse exercício? nada me impede de continuar tropeçando e fingindo que nada aconteceu. não consigo não olhar, por mais barango que seja. tenho tentado observar quais perguntas faço aos meus movimentos.

e vou pedalando pela faixa que divide uma mão da outra. penso que é muito arriscado dizer e percebo só depois de sentir a timidez. talvez aqui caiba perguntar. um amigo me disse que usa capacete pra andar na cidade mas não na estrada porque acidentes pequenos podem machucar. como se deixasse de fazer sentido se proteger a partir de uma certa velocidade. quantas formas de cuidado consigo pensar durante uma queda? continuo aqui, lentamente e sem pontuar nada.

outra pessoa fala. sou capturado pelo timbre meio rouco que tenta falar mais rápido que a própria boca, como se quisesse fazer esquecer. é tudo muito esquecível mesmo, a não ser por pequenas frases que parecem começar do meio, então tomo notas. lentamente, sem pontuar nada. e tomo sempre como fim um banho gelado.
e tenho todo o direito de perguntar.

2

saio do banho, ainda tem um pouco de sabão na minha mão. quando era criança não gostava muito de banhar assim sem motivo. lembro que tirava a roupa e entrava com receio, pensando que talvez fosse possível enganar o corpo por um momento. mas entre a violência das gotas geladas e a espuma descendo pelo ralo, algo invertia esse afeto. nunca consegui determinar com exatidão quando ocorria mas toda vez acabava implorando pra não desligar o chuveiro. e já fiz de tudo pra evitar aquele momento em que teria que gritar minha mãe pela toalha, igual uma chaleira que apita que acabou, enquanto prestava atenção nas últimas gotas que aterrissavam meu pé. vez ou outra, lavando o umbigo ou a orelha esquerda, lembro da toalha no varal e me dou alguns minutos antes de encarar o mundo com os pés molhados.

dou de cara com um degrau. tenho que confessar, bem aqui onde o chão se dobra, que cultivo o hábito de medir. há pouco, apostamos no “fazer caber” e assim iremos do jeito que der. acalmo outro degrau com meu passo. acredito que ultrapassamos algumas fronteiras mas pode ser que meus pés tenham opiniões demais. e quando repito a rota penso: será que com o acidente se convida a mudança?

devoro o chão pensando em acabá-lo com pressa. agora, é a outra perna que dorme e assim se faz presente: sumindo. começa a formigar, cobrando uma reação quando tento ser móvel. há diversas formas de lembrar de parar, mas essa é a mais sutil delas. tenho passado todos esses anos tentando me equilibrar apenas para meu corpo poder insinuar a separação com a verticalidade. 

diferente dos tropeços, que dependem do estado de espírito, toda queda deve acontecer por excesso. não entendo muito desse chão, mas sei que não poderia tropeçar em dois lugares ao mesmo tempo. uma queda de cada vez? a essa altura me parece tentador. não chegar a lugar algum só configura um trajeto se me deparar com uma rua sem saída.